terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

As estórias bem contadas do poeta Augusto Cerqueira

Augusto Cerqueira e David da Silva - Foto: Marco Pezão
Tá por aí. Desde dezembro de 2013. Solto nas ruas feito vira-lata que não nega raça. O livro de contos Na Década de Dez marca a estreia de Augusto Cerqueira na literatura impressa. Na literatura falada dos saraus ele já é veterano. E um dos referenciais da cultura periférica na Grande São Paulo.
Poemas e cordéis de Augusto Cerqueira já perambulam por algumas coletâneas. Mas este volume com 10 contos é o start da sua carreira em livro solo. Maloqueiro que se preza nunca anda sozinho. Por isto o livro foi lançado juntamente com o CD Sarau do Augusto.
O livro é todo impresso em letra cursiva, na caligrafia do próprio escritor. Exigência do Augusto aos editores. Como se recebêssemos de suas mãos o manuscrito original. Contato físico com o calor da escrita humana, num contraponto à frieza desta era digital.
Nenhuma página é numerada. Tudo está escrito em letras minúsculas – nomes de gentes, de bichos, lugares.
Como diz um dos personagens, o ofício de Augusto Cerqueira é exprimir “em letras as desordens da minha cabeça”. Boêmio inveterado, o poeta-contista nos agarra pelos olhos para um mergulho profundo na alma encantadora das ruas, nesta triste e linda zona sul paulistana.

Sob o signo da migração
Nenhum personagem do livro está quieto no seu canto. Todos vivem em trânsito, mudando de casas e de empregos, transferindo-se de cidade a cidade, trocando um amor pelo outro.
O leitor é conduzido para a vadiagem literária por bairros como Socorro, Piraporinha, Capão Redondo, Vaz de Lima, Jardim Imbé. Com esticadas aos subúrbios da Grande Sampa – Osasco, Barueri, Mairiporã, Carapicuíba...
Um deslocamento meio que agônico pelo espaço e pelo tempo.
Com direito a uma parada no litoral paulista (Praia Grande) num conto onde nada acontece ao redor – a agitação se dá na alma do personagem, no estilo típico de Clarice Lispector.
Virando-se algumas páginas, Augusto nos arremessa a duas aventuras situadas no início do século passado – a primeira delas no sertão da Paraíba, e a outra num local não definido em plena caatinga nordestina.
A letra de mão de Augusto Cerqueira nos leva pra onde “o vento da curiosidade soprar”.

Ilustração de Renata Felinto para livro de Augusto Cerqueira
Sutis seduções
A sedução é uma constante nas 10 estórias. Numa linha muito próxima à das autobiografias romanceadas de Henry Miller. Mas, ao contrário do escritor norte-americano, aqui tudo é contado com erotismo sutil.
Nas 132 páginas da obra, a figura feminina tem o dom da ubiquidade.
Há mulher por toda parte. Tem Ana, Paulinha “da sexta série”, Helena, Dara, Aline, dona Estela, Cleide, Rita.
Tem a estonteante dançarina de strip-tease Dora...
E a inesquecível dona Aurora com apenas um colar de pérolas sobre sua pele excitante de sessentona cor de bronze (musa do conto mais antigo, escrito em 2006).

Maluquices maloqueiristas
Entre os personagens masculinos, não há nenhum certo da cabeça. “De perto ninguém é normal”, diz Caetano Veloso, conterrâneo dos pais de Augusto, nascidos em Santo Amaro da Purificação (BA).
Um destes homens criados pela mente inquieta do autor (ou seria ele mesmo?) tem a capacidade de considerar um parque arborizado com crianças e idosos em lazer como “um inferno”.
Outro já se afeiçoa de uma piscina abandonada, com larvas nadando em água esverdeada, e cheio de cachorros em volta esvaziando os intestinos (“adorei este lugar”).
Há outra cachorrice divertida. O personagem desempregado do segundo conto do livro fica irritadíssimo ao saber que o dog alemão Duque é astro de filme pornô (“Esse cachorro come melhor que eu”).
As relações amorosas por vezes enveredam para situações inesperadas, como no conto Viúva de Isa.
Como não podem faltar cenas de sangue em nada que se refira à periferia, a tragédia também bate cartão de ponto entre um e outro conto. Está presente na morte desconcertante da nadadora salva-vidas Aline. Ou na morte nada misteriosa de Amintas, o “comedor de mulheres casadas”.
Botequeiro infalível, Augusto Cerqueira tem o humor cáustico bem dosado. Não há como evitar o riso ao saber que o personagem Odivan Oliveira Silva recebeu de sua mãe este nome inspirado em famosa canção de Roberto Carlos (“O Divã”).

Por trás da escrita despachada, respira uma sintaxe caprichada. Augusto Cerqueira brinda o leitor com aliterações e assonâncias abusadas (como na descrição da dançarina Dora: “fêmea fera de gosto afoito pelo coito”).
Já no conto de abertura, o poeta e contista alça voo literário digno de Gustave Flaubert.
A morena Marina de gaiatice no olhar, em plena idade desejável. Casada a contragosto por imposição da mãe. Capaz de resignar-se com sua triste sina, ao se encantar com o brilho de um raio de sol sobre o fungo lilás brotado numa lata de tomate, esquecida pela metade no único vitrô do cubículo no porão onde vai viver sua lua de fel.

Contato com o artista e aquisição do livro, no facebook.

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